Ana

Ana, 24 anos, foi vítima de violência doméstica por parte do então companheiro durante três anos. Mãe de Guilherme, hoje de 6 anos, conta-nos as memórias de um passado que deixou marcas, mas do qual se libertou para encontrar uma nova vida.

O que a levou à Casa de Abrigo Alcipe?

Juntei-me com um senhor e passado pouco tempo tivemos logo o Guilherme. Quando o Guilherme nasceu, as coisas começaram a complicar-se, acho que devido aos ciúmes, como dava mais atenção ao menino, não tinha tempo para ele como antes e começou tudo aí. Juntaram-se problemas com a ex-mulher e com os outros dois filhos dele, dívidas em comum que eles tinham e tudo isso veio a agravar-se.

A minha mãe começou a ver-me no Verão de camisola de gola alta e com marcas no pescoço. Começou a achar estranho e eu dizia que estava sempre tudo bem - nunca podemos admitir, só podemos omitir o que se passa.

Qualquer pessoa que ia lá a casa, havia discussão, fosse a minha irmã, o meu irmão, fosse quem fosse. Desde que o menino nasceu nunca mais me deixou trabalhar, nem queria pôr o menino na creche. De madrugada, ia trancar-me a porta para eu não sair, para não estar com ninguém. Ultimamente até os telefones partia. Entretanto, eu comecei a preparar os papéis do pedido da custódia e disse-lhe que me queria separar no dia 27 de abril de 2014.

O que motivou a decisão de terminar a relação?

O meu filho assistir, o meu filho chorar. Aquilo que eles veem é aquilo que eles fazem, portanto aí foi mesmo o clique que me fez sair.

Nem vontade tinha para sair de casa, estava mesmo isolada. O meu tio e os meus avós foram-se apercebendo e disseram que eu tinha que fazer: "ou fazes queixa ou nós fazemos", disseram.

Separei-me e fiz queixa à polícia. No dia em que fiz a queixa, ele levou o meu filho e ao fim de 24h apareceu com o menino. Vinha todo sujo, cheio de fome, com a roupa rota. Entregou-me o menino, disse que queria ficar comigo e eu disse-lhe que não. Saiu enfurecido e começou a dar cabo da vida das pessoas que nos estavam a ajudar: desde ameaçar-me de morte, cortar pneus à facada à minha mãe, incendiar a casa e a carrinha do meu pai a estragar o barco todo ao meu pai. Foi aí que o meu irmão disse: tens mesmo que ir para a APAV que isto não pode continuar.

Sentiu que a única saída era procurar uma Casa de Abrigo?

Não queria ir, não sabia o que ia acontecer, sabia que ia estar privada de tudo e todos. Estava com imensos sentimentos, mas nenhum deles era bom. Quando chegamos fica tudo a olhar para nós: mais uma. O que é que se passou? Que história é a dela? E depois ouvimos tantas histórias.

Ajuda encontrar pessoas que passaram pela mesma situação?

Ajuda e não ajuda, porque naquele momento não queria nem conseguia estar com ninguém. Depois, quando lá estava, recebi a notícia do desaparecimento do meu irmão no mar. Todas se uniram e tentaram puxar-me para fora do quarto e foram tentando ajudar.

Como é estar acolhida numa Casa de Abrigo?

É tudo e é nada. É tudo porque naquele momento temos que ter noção que estamos só com o nosso filho e estão ali aquelas pessoas e só aquelas pessoas podem ajudar e é nada no sentido em que não temos a nossa família, nem temos contacto com ela. Provoca uma explosão de sentimentos. Protegeram-me, claro: ele correu o país e não me encontrou por causa disso. Mas viver a nossa história e as histórias daquelas pessoas e daquelas crianças é tão complicado.

É fácil terminar uma relação deste tipo?

Sem dúvida que não. Se não tivermos ajuda, alguém connosco, não conseguimos. Tinha um filho pequeno, estava desempregada, não tinha grande movimento, autocarros ali eram poucos, não tinha carta de condução, estava quase presa e ele sabia disso.

Como se ganha força?

Só mesmo com a ajuda da nossa família. Olhando para os nossos filhos e ver o que não queremos para eles. Só de os vermos a chorar ao pé de nós, a ver as coisas que sentimos e que estamos a passar, é muito complicado. Acho que já estava acomodada, agora ver o meu filho na situação em que ele estava fez-me mesmo acordar para a vida.

Passado todo este caminho, quem é a Ana?

Nunca mais voltei a ser a mesma, mas agora estou bem. Tenho um namorado que me adora e eu gosto muito dele. O Guilherme adora-o e chama-lhe pai. É tão bom ver que ele está finalmente a assentar, depois de tantas lágrimas. E agora tenho a minha casinha, o meu espaço, vou tirar um curso de equivalência ao 12.º ano e estou a tirar a carta de condução. Vai tudo ser diferente.