IVONE

Ivone, 39 anos, nasceu no Brasil e veio viver para Portugal com 24 anos, onde conheceu o pai do seu filho que hoje tem 10 anos. Enquanto prepara o almoço relembra o pesadelo que viveu durante 10 anos com o ex-companheiro e explica como conseguiu ultrapassar e voltar a ser feliz.

O que a levou à Casa de Abrigo Alcipe?

Parte dela até já esqueci. Aconteceu tanta coisa boa que tenta-se sempre superar. Tudo começou no início de estar a viver com a pessoa e ao longo do tempo foram-se agravando as situações -um bocado complicadas e violentas. Cheguei a um ponto que não dava para aguentar mais, tive de tomar uma atitude. E atrás dessa atitude temos que levar muita coisa, carregamos muitos problemas e enfrentamos a fúria.

Como é libertar-se de uma relação de violência que dura tantos anos?

Eu ouvia as pessoas falarem que não aceitavam se fosse com elas e eu ficava a olhar e pensava: talvez até fazia ou talvez não, porque as coisas vão acontecendo, acontecem uma vez, acontecem a segunda e vai gerando uma situação da qual acabamos por ganhar medo, vergonha e vamos tentando desculpar e nos culpar a nós mesmos - eu fazia isso muita vez.

As pessoas não reparavam no que a Ivone estava a passar?

Não. Houve uma vez uma vizinha que perguntou: o que tens no olho?. Tinha o olho vermelho por dentro e eu disse-lhe que era alergia. Quando isso acontecia e tinha que ir trabalhar, maquilhava-me, quando não tinha que ir trabalhar ficava em casa até passarem as mazelas para ninguém me ver.

Apresentou queixa à polícia?

Fiz uma vez, foi a primeira vez que me foi feita a proposta para ir para uma Casa de Abrigo. Fiquei assustada e acabei por desistir e fiquei na mesma em casa. Estava presa porque não tinha lugar para ir, também não queria arriscar uma Casa de Abrigo e tinha o menino, que ele fazia muitas ameaças: sais daqui eu tiro-te o menino, vais ficar sem ele, não tens cá ninguém, és brasileira e eles não te vão dar o menino. E acabei por ficar, até que ele ameaçou que me matava e eu não quis arriscar, fiz a última queixa e saí mesmo de casa.

Recorda-se do primeiro dia de acolhimento na Casa de Abrigo Alcipe?

Estava cheia de medo, sem saber para onde ia. Quando me levaram para a Casa de Abrigo comecei a ver um sítio que não imaginava e pensei que estava a entrar numa prisão. Mas a prisão maior eu já tinha comigo, já trazia de casa. Entrar num lugar que a gente não conhece, arriscar uma nova vida, com duas crianças, vinha muito assustada, sem saber o que me esperava.

Encontrei apoio. Aprendi muita coisa: a ignorar muita coisa, a ouvir muita coisa, a ver situações que ainda são piores que a minha.

Como é educar um filho numa Casa de Abrigo?

É complicado. No início ele revoltou-se muito, queria voltar para casa e dizia que aquela não era a nossa casa. Explicar isso para uma criança é muito complicado. Ele ouviu tudo o que o pai me disse quando saímos de casa e culpava-se porque achava que poderia ter dito alguma coisa, ter ralhado com o pai. Na Casa de Abrigo ele começou a conviver com crianças com quem antes ele não convivia e fez ali amigos. A passagem pela Casa Abrigo fez dele uma criança mais crescida.

Como foi saída da Casa de Abrigo?

Encarar uma casa nova, que é da gente e que é estranha ao mesmo tempo, foi um bocado complicado. Senti falta da Casa Abrigo, conheci boas pessoas, umas que tomaram rumos diferentes e provavelmente nunca mais vou vou ver e outras com quem fiz amizade e que ainda estão por perto.

Depois de todo este processo, quem é a Ivone de hoje?

É uma Ivone mais confiante, que já não chora tanto, mas também já não tem tantos sorrisos. A minha vida hoje é “corre-corre”: trabalho, os miúdos na escola, é finalmente uma vida, digamos, normal.