Mariana

Mariana (nome fictício), esteve casada durante 14 anos e viveu acolhida na Casa de Abrigo Alcipe da APAV durante três anos e quatro meses. Abre-nos as portas da sua casa e conta-nos como ultrapassou todas as barreiras que a luta por uma vida sem violência lhe impôs.

O que a levou à Casa de Abrigo Alcipe?

Estive casada durante 14 anos e houve uma altura em que achei que as coisas não estavam corretas: não nos entendíamos, havia muitas discussões, havia muitos problemas e o Nelson, que é o meu filho, andava ali no meio da situação.

Depois de algum tempo e de a situação piorar ainda mais, consegui admitir que havia algo que não era comum num casamento. Primeiro há aquela fase de a gente admitir e depois só então ter a coragem para sair e ir pedir ajuda. Saí de casa, estive cerca de um mês numa Casa de Abrigo e ao fim desse tempo começámos a conversar e achámos que até se poderia melhorar alguns pontos. Falei com as técnicas da Casa e elas disseram-me: qualquer coisa tem a porta aberta. Tinha de tirar a dúvida porque foram 14 anos e pensei pode ser que ele mude, que veja que até sou capaz de ir para a frente e que seja o clique que ele precise. Mas não resultou, ao fim de um mês, mais ou menos, vieram os primeiros problemas e então caiu a ficha na totalidade, percebi que se tivesse ficado na Casa de Abrifo já tinha meio caminho andado.

Apresentou queixa?

Apresentei, mas não deu em nada. Apresentei queixa, a polícia ainda foi lá falar com uns vizinhos e eles ouvem tudo e ouvem a casa a partir, mas ninguém faz nada porque acham que entre marido e mulher ninguém mete a colher. Tive um vizinho que me disse que sabia dos problemas que havia mas que nunca se iria meter. Eu sei que os vizinhos ouviam, eram vizinhos em baixo e em cima, era impossível não ouvirem. Mas pronto, foi a minha palavra contra a dele.

Já tinha queixa de uma outra vez numa situação em casa da mãe dele: a polícia foi lá, eu estava decidida a ir por onde fosse e o polícia disse-me: a senhora sabe o que é uma casa abrigo? Se soubesse não queria sair daqui, vai para um quarto e fica lá fechada com o seu filho e ninguém quer saber de si. Na queixa seguinte calhou o mesmo polícia e quando viu que éramos nós outra vez disse: vá, vamos para a esquadra. Foi aí que entrei na Casa Abrigo. O polícia nem me deixou explicar nada.

“Entre marido e mulher ninguém mete a colher” é uma frase que se continua a aplicar?

Completamente. Há muita gente ainda que tem essa atitude. No meu caso, quem nos visse na rua achava-nos o casal perfeito, mas dentro de casa era um inferno. Às vezes a gente vai à rua não é porque vá com satisfação, porque basicamente vai obrigada e então tem que ir de boa cara porque não dar nas vistas.

E se calhar a maior parte das vezes, quem me dera mim que o vizinho de cima tivesse chamado a polícia e que a polícia batesse à porta naquela hora da confusão. E no entanto, nunca tive nenhum que o fizesse. Acho que as pessoas deviam preocupar-se porque hoje sou eu, amanhã é outro, depois é o filho do outro e é uma roda que toca a todos. Por isso, há certas coisas que não devemos desvalorizar, principalmente quando há crianças no meio.

Como passei por isso valorizo esse ato, se calhar as pessoas como nunca passaram não dão tanto valor, que acaba por ser um bocado assim, a gente conforme vive é uma aprendizagem e valorizamos ou não valorizamos determinadas coisas, há coisas que nem pela cabeça nos passam porque nunca passámos por elas.

O seu ex-marido procurou-a?

Procurar não, mas quando fui para a Casa de Abrigo decidiu fazer queixa por rapto de criança e eu fui chamada para depor e automaticamente tive de resolver a situação das responsabilidades parentais. Ao fim de dois meses de estar numa casa de abrigo, era a única coisa que tinha resolvida, ainda nem tinha começado tudo o resto. Hoje em dia, é óbvio que ele sabe onde estou, não tem a morada, mas sabe que sou segurança, que tenho a minha casa, porque o miúdo convive com ele e acaba por ser normal comentar. Mas isso agora já não me preocupa, porque ele não me chateia muito.

A família e os amigos tiveram um papel importante?

Não. O meu pai tinha falecido há muito pouco tempo e eu decidi não envolver a minha mãe. A família do meu lado não tinha conhecimento e a família do lado dele sabia e assistia. Acabei por encarar isto sozinha. As técnicas da casa foram as pessoas que me ajudaram. No fundo as pessoas de lá acabaram por ser as minhas amigas e a família ao mesmo tempo que eu não tive.

Recorda-se do primeiro dia na Casa de Abrigo?

Foi um bocadinho complicado. São muitas mulheres juntas e depois uma diz isto, outra diz aquilo. Enquanto a gente acaba por não criarmos o nosso próprio espaço e fazer com que os outros nos respeitem, uma pessoa que entra de novo está sempre mais vulnerável. E pronto, tive ali uns tempos um bocadinho complicados, os primeiros principalmente, mas depois as coisas foram ao normal.

Apesar de complicado, é uma sensação de libertação?

É, porque a gente chega à noite e vai para a cama e não entra ninguém pela porta para nos chatear, coisa que eu não tinha em casa muitas vezes. Ali sabia que à noite ninguém me vinha chatear, podia haver barulho mas eram as outras, não havia nada de complicações para o miúdo e para mim. Ao mesmo tempo também a liberdade: ir à rua e saber que não o ia encontrar, demorava lá o tempo que queria, ninguém me chamava a atenção, ninguém tinha que estar a criticar.

Desde que entrei aqui para dentro deixei de ser vítima, a vítima era lá fora. Porque, no fundo, muita gente depois carrega o papel de vítima mesmo dentro da Casa Abrigo. Isso passou. A gente desde que sai de casa podemos ser vítimas seja do que for, mas desde que pedimos ajuda e saímos dali e entramos noutro circuito, acabou-se as vítimas. Temos que nos fazer à vida e lutar pelas coisas. Acabou por ser um bocadinho no que eu me fundamentei.

Como é educar um filho numa Casa de Abrigo?

Muito complicado. Primeiro são muitos miúdos, depois, infelizmente, há uns que estão um bocadinho mais afetados que outros. Se aquela pressão é má para nós que somos adultas, para eles ainda deve de ser pior. Encaixar o porquê de estar ali, viver ali com tanta gente desconhecida não é fácil. Eu não tive muitos problemas em lidar com o meu filho, ele é um miúdo calmo e eu era rígida. Nesse aspeto, tive imensa sorte.

Passado 3 anos na Casa de Abrigo, quem era a Mariana?

Era aquela pessoa que eu sabia que até existia e que sempre existiu. A gente entra num circuito de problemas a nível conjugal, vai perdoando e vai-se baixando até que já nem sabemos se podemos rir ou se devemos estar caladas, se chorar faz mal ou bem, tudo o que fazemos ou não fazemos é errado. Eu no fundo sabia que essa pessoa ainda existia, só que deixei andar escondida, deixei que alguém pisasse.

Hoje, é feliz?

Completamente. Não tenho quem me chateie, o meu filho está bem. Estamos na nossa casa e aos pouquinhos vamos conseguindo mais umas coisas e outras, mas essencialmente aquele sossego, aquela liberdade. Não há aquela pessoa que está sempre ali a criticar. Acho que o Nelson também se sente bem e feliz.