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Contributo do Juiz Desembargador jubilado Caetano Duarte sobre o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Publicado .

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima vem partilhar publicamente a reflexão efectuada pelo Exmo. Senhor Juiz Desembargador jubilado e antigo Presidente da Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes, Dr. Caetano Duarte, a propósito do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto relativo ao Processo n.º 355/15.2 GAFLG.P1. 

Pretende-se com esta partilha, expressamente autorizada pelo autor, trazer mais um contributo para o debate que decorre na sociedade portuguesa sobre este tema, sendo que esta é uma opinião especialmente relevante em virtude do conhecimento, experiência e funções exercidas pelo Dr. Caetano Duarte.

 

"DIGNIDADE DA FUNÇÃO JUDICIAL

O acórdão da Relação do Porto assinado pelos desembargadores Neto de Moura e Luísa Arantes tem sido objecto de muitos comentários. Apesar disso não me posso abster de, sobre o mesmo, deixar o meu depoimento. E faço-o na qualidade de juiz desembargador jubilado e de ex-presidente da Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes que, entre outras competências, atribui indemnizações às vítimas de violência doméstica. Nesta última qualidade, tive oportunidade de acompanhar muitas situações de violência doméstica e de ler muitas decisões judiciais relativas a este crime pelo que, ao mesmo, sou especialmente sensível.

Na aplicação da lei, o julgador tem de se conformar com as normas constitucionais e a Constituição da República Portuguesa é clara na condenação da discriminação contra as mulheres ao afirmar, no seu artigo 13º, que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de…sexo”. Diz ainda a Constituição, no n.º 2 do seu artigo 16º, que “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

E a Declaração Universal dos Direitos do Homem afirma, no artigo 1º, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, e acrescenta, no artigo 2º, que “todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamadas na presente declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de... sexo.”

A fundamentação do acórdão em causa é claramente discriminatória das mulheres ao considerar que “o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem”. E ao afirmar que “o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente e por isso se vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher” contraria, de forma inequívoca, a legislação portuguesa que, no seguimento das normas internacionais atrás citadas, visa proteger a dignidade da mulher e prevenir e sancionar a sua vitimação. Esta fundamentação é indubitavelmente inconstitucional e violadora da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Concluindo, não posso deixar de, para além de manifestar o meu repúdio por este acórdão, fazer dois apelos:

- às organizações não governamentais que lutam pela dignidade da mulher e contra a sua vitimação para apoiarem a vítima deste processo em recurso a interpor necessariamente para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem;

- ao Conselho Superior da Magistratura para que, no uso da sua competência disciplinar, aprecie se esta fundamentação usada pelo desembargadores Neto de Moura e Luísa Arantes é compatível com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções."

José Albino Caetano Duarte
Juiz Desembargador jubilado