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Posição da APAV sobre o recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto relativo à prática do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência

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Na sequência do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto relativo à prática do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, das várias reações que a mesma motivou e da nota informativa emitida pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses, manifesta a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima a seguinte posição:

1. Não se tratando, no sentido técnico-jurídico do termo, de um crime de violação, mas sim de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, a reiterada colocação da tónica nesta distinção pode transmitir uma ideia de diferença substancial ao nível da gravidade das condutas, ideia que não corresponde à realidade, na medida em que não só os dois tipos de crime partilham um elemento essencial – a ausência de consentimento – como a moldura penal é aproximada no seu limite mínimo (3 anos no caso da violação, 2 anos no caso de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência) e igual no seu limite máximo (10 anos).

2. Avaliar, num caso desta natureza, a ilicitude como não sendo elevada pelo facto de os danos físicos serem inexistentes ou diminutos é não só incorreto como redutor: incorreto porque a vítima apresentou equimoses e hematomas em diversas partes do corpo em consequência dos atos dos arguidos, tendo tal sido considerado provado, pelo que negá-lo ou minimizá-lo, como é feito nesta decisão judicial, é fator potencialmente causador de vitimação secundária; redutor porque, como é por demais sabido, os danos principais, mais profundos, mais duradouros e mais difíceis de ultrapassar neste tipo de crimes não são de natureza física, mas sim psicológica, habitualmente com consequências na vida pessoal, familiar e social das vítimas. Lamentavelmente, contudo, e ao arrepio do Código Penal, que estabelece que na determinação concreta da pena, o tribunal deve considerar o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, não encontramos nesta decisão judicial uma única referência à consequência mais relevante que os atos criminosos sofridos por esta vítima lhe podem ter causado. Ou seja, depreende-se do silêncio total da decisão no que respeita ao impacto emocional e psicológico dos crimes que à vítima não terá sido dada a oportunidade de se expressar quanto ao mal que em concreto esta situação lhe causou e que, consequentemente, tal não foi tido em conta na determinação da medida da pena.

3. Discorda-se frontalmente das considerações tecidas e das conclusões extraídas acerca do grau de culpa dos arguidos: dizer-se que esta se situa “(…) na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica, ambiente de sedução mútua (…)” é, no mínimo, de uma benevolência inaceitável. É desde logo muito forçado falar-se em sedução mútua, quando o único elemento de prova apontado como corroborador desse facto é o ter a arguida estado em dado momento a dançar junto de um dos arguidos. Mas mesmo admitindo esse ambiente de sedução e a sua eventual potenciação pelos efeitos do álcool, fundamentar aí uma menor culpa dos arguidos afigura-se um salto demasiado grande, que nos leva para teorias vitimológicas, há muito ultrapassadas, que centravam o estudo da vítima na perspetiva do grau da sua contribuição para o crime. Justificar a diminuição da culpa dos arguidos pela prática de atos sexuais sem consentimento da vítima com base no facto de ter sido “uma noite com muita bebida alcoólica” e num suposto ambiente de sedução (que, quando muito, existiu relativamente a um dos arguidos mas que, pasme-se, beneficiou ambos) significa, sem meias palavras, atribuir alguma culpa à vítima pelo que sucedeu. E isso é inaceitável e bem demonstrativo aliás de visões de género estereotipadas e da consequente tolerância com que actos extraordinariamente violentos ainda são encarados no seio da nossa sociedade.

4. Repudia-se uma passagem da decisão do Tribunal de primeira instância, na qual se refere que “em nenhum momento das suas declarações deixa a ofendida transparecer qualquer intuito vingativo ou retaliatório contra os arguidos, tanto mais que não deduziu qualquer pedido de indemnização civil, sendo, assim, de afastar hipotético intuito de locupletamento com a apresentação da queixa.” Estas considerações, que neste caso concreto são favoráveis à vítima, revelam contudo um preconceito inaceitável relativamente ao exercício de um direito legalmente reconhecido a toda e qualquer vítima de crime: o de apresentar um pedido de indemnização pelos danos sofridos em resultado do ilícito criminal sofrido. Isto é, se porventura neste caso a vítima tivesse legitimamente exercido o seu direito a indemnização para ressarcimento dos danos materiais e não materiais sofridos, o tribunal iria porventura considerar o seu depoimento menos credível por entender que o que na realidade aquela pretendia era obter uma vantagem patrimonial dos arguidos.

5. A suspensão da execução da pena de prisão é não apenas um desfecho surpreendente mas sobretudo um sinal perigoso. Não porque essa suspensão não seja, sob o ponto de vista legal, possível, porque o é, tendo em conta a pena concreta aplicada. Nem porque não haja jurisprudência nesse sentido, porque há de facto alguma – diremos até, demasiada. Mas ao analisar-se esta decisão judicial, resulta claro que as elevadas exigências de prevenção não apenas geral – como é reconhecido na própria decisão – mas também especial – ao contrário do concluído na decisão – justificariam outra opção. Recorde-se que estamos perante indivíduos que, “à vez”, na casa de banho de uma discoteca – que, não esqueçamos, era o seu local de trabalho, pelo que aos deveres gerais enquanto cidadãos acresceriam as obrigações específicas decorrentes da sua atividade profissional, nomeadamente em relação aos clientes -, abusaram sexualmente de uma pessoa num estado de embriaguez que em muitos momentos a colocou em situação de inconsciência e que – e este é um ponto fundamental – não manifestaram qualquer arrependimento pela prática dos crimes. Daqui pode inferir-se terem considerado à data dos factos e continuarem a considerar hoje normal e aceitável praticar atos sexuais com alguém que não o consentiu nem sequer estava em condições de o fazer. E ainda que a detenção, a prisão preventiva e todo o processo, culminando no julgamento, possam ter tido algum efeito dissuasor da prática de outros crimes no futuro, a verdade é que não resulta da decisão judicial qualquer sinal exterior por parte dos arguidos de interiorização da gravidade das suas condutas, pelo que não se compreende como podem ser as exigências de prevenção especial consideradas reduzidas. Quanto às exigências de prevenção geral, as mesmas são tão evidentes que não carecem de explicações adicionais, o que torna ainda mais incompreensível que, na ponderação das necessidades de prevenção, a balança tenha pendido de forma tão desequilibrada para o prato da prevenção especial em detrimento da geral. É que, como alega, e bem, o Ministério Público em sede de recurso: “ o efeito ressocializador, sendo embora um dos vectores basilares aos fins das penas, cede, necessariamente, perante as exigências de tutela do bem jurídico e da necessidade de neutralizar os efeitos do crime como exemplo negativo para a sociedade e simultaneamente contribuir para fortalecer a consciência jurídica da comunidade.”

6. Decisões como esta reforçam a necessidade de um maior investimento na formação dos magistrados sobre estas matérias, não tanto no que se refere ao enquadramento legal que baliza o julgamento da causa mas na análise mais vasta da factualidade em apreciação. Impõe-se a multiplicação de esforços que permitam dotar os julgadores de maior e melhor conhecimento multidisciplinar e, simultaneamente, mitigar alguns mitos e estereótipos sociais e culturais nefastos para uma boa decisão.

7. Num Estado de Direito democrático, assim como a sociedade deve acatar e respeitar toda e qualquer decisão proferida pelos tribunais, deve igualmente o poder judicial aceitar a liberdade de opinião, respeitar o direito à crítica e, até, participar no debate, contribuindo para um cabal entendimento das decisões por parte da comunidade.

8. Congratula-se a APAV com a preocupação expressada pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses relativamente ao sofrimento e aos direitos das vítimas de crimes, esperando que tal consubstancie um claro sinal de que aquele mereça cada vez mais atenção por parte dos magistrados enquanto elemento importante para uma boa decisão da causa e que estes encontrem na prática judiciária diária cada vez maior correspondência com o que a lei já preconiza.

© setembro 2018, APAV